Carta sobre a minha avó.
- Psicóloga Fernanda Moreira
- 23 de jan.
- 3 min de leitura
Presa às amarras psíquicas da escravidão, aos quase 80, ela segue vivendo tal como se ainda fosse uma criada muda.
Uma mulher que teve todos os seus direitos negados, retirados, desumanizada de corpo e alma.
Dela foi retirado até a data de nascimento, a que consta em registro não corresponde ao verdadeiro dia que ela nasceu.
A desumanização se repete quando recebe do pai apenas atos perversos, agressivos, e falas brutais que animalizam e fazem referência à mula.
Não me assusta ler Lélia Gonzales, em sua obra ‘por um feminismo afro latino americano’, a sensação que tenho é que de que, em cada trecho, ela está retratando e falando de todas as mulheres da minha família. Todas as histórias já me são conhecidas, em alguma medida.
Mas voltando à minha avó..
Não gozou de nenhuma regalia ao longo de toda a vida. Todos, eu disse todos, os seus direitos foram retirados. Nunca pode escolher, nunca pode opinar. O espaço destinado a ela sempre foi o do silêncio e da punição. Se não por causas raciais, por causas de gênero ou religiosos.
Sem carteira registrada, trabalhou durante anos na roça, depois de doméstica, depois dependeu do marido que não a deixava trabalhar. A aposentadoria que recebe é ‘herança’ do antigo casamento. Quais as outras alternativas às mulheres negras nos anos 60, 70, 80 ou 90? Se haviam, a minha avó não gozou de nenhuma.
Não pode construir nada além da família, isso que eu ainda não citei que ela perdeu três, dos cinco filhos que pariu. E ainda foi separada de todas irmãs. Ao longo da vida tentou por diversas vezes aprender a ler e escrever, direito que também foi negado porque, hora ela não tinha acesso à escola, hora os diversos traumas e dificuldades de aprendizagem a impediram de progredir nos estudos.
Uma vida sem nenhuma regalia.
Hoje aos 80 a minha avó é o resultado que o racismo e o machismo esperam de uma mulher negra. Nada pode construir, sequer dignidade. Indignidade na infância. No casamento. No próprio lar. E ao chegar na ‘melhor idade’ adivinhem? A vida a presenteia com Alzheimer. Não consegue se lembrar da informação que recebeu há cinco minutos. Não tem disposição para nada. Passa o dia sentada e encolhida numa cadeira no canto. Embora liberta, parece que ainda vive com uma criada muda. Quieta, calada no canto observando a vida acontecer enquanto nós a vivemos.
Criada para ser muda. Criada, pelo próprio pai, para ser mula. Não pôde falar, não pode opinar, não pode sequer pensar. Nada pode, a menos que seja para trazer dor, retraimento, solidão. Ai sim, tudo pode.
Enquanto escrevo isso me vem um questionamento: seria o Alzheimer capaz de apagar todas as marcas de sofrimento? Seria ele capaz de fazê-la esquecer dessa vida de dor? Dessa vida sem risos? Sem gozar de nenhum privilégio?
Eu olho para a minha avó e ela parece ser a personificação daquilo que autores como Fanon, Lélia e Neusa Santos descrevem em suas obras. Aquilo que Fanon fala sobre a alienação do negro? A minha avó encarna cada parte desse conceito. Aprendeu desde muito cedo que deveria odiar a cor da sua pele, seus traços e seu cabelo. Casar com branco era a salvação para melhorar a sua prole. Desde cedo aprendeu e internalizou a ideia de que precisava negar a sua existência enquanto mulher e negra.
Como esperar que ela fosse diferente? A sua existência foi negada de várias formas. Desde o dia que nasceu. Negaram a ela até o direito de ter em seu registro, o dia do seu nascimento.
Sentada em sua cadeira, assiste os dias passarem desfilando entre as horas, dia e noite, passarinhos cantando ou chuva caindo. Não sabe ver as horas, não sabe ler ou escrever, não sabe crochê, perdeu o gosto pela cozinha, a religião não permitiu que ela conhecesse os prazeres que as artes, como o cinema e a música, produzem. Uma vida indigna. Impedida de aprender a apreciar. Se não pela pobreza, pelo sofrimento ou pela doença.
Mesmo historicamente liberta, a minha avó vive sob as amarras psíquicas da escravidão.
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